Pacientes feridos, dopados e que ainda eram obrigados a trabalhar, mesmo com as famílias pagando altas mensalidades. Esse foi o cenário que a Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul relatou ter encontrado, na última sexta-feira (25), em comunidade terapêutica que operava de maneira irregular em Campo Grande. O estabelecimento foi alvo de operação envolvendo vários órgãos de defesa dos Direitos Humanos e Saúde.
“Encontramos pacientes extremamente dopados, que não conseguiam nem balbuciar o próprio nome”, relata a Coordenadora do NAS (Núcleo de Atenção à Saúde) da Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul, Eni Maria Sezerino Diniz.
O que era para ser uma fiscalização de rotina do Mecanismo Nacional de Prevenção e Controle e Combate à Tortura resultou na constatação de graves violações, incluindo cárcere privado, sequestro e lesão corporal na comunidade.
“Nós começamos a conversar com algumas pessoas e, de imediato, assim que pusemos o pé ali, nós já recebemos um primeiro pedido de socorro, de um senhor idoso que estava fazendo uma limpeza lá, dizendo que ali havia pessoas doentes sem o devido cuidado”, conta Eni ao Jornal Midiamax
Pacientes em estado grave
Segundo a defensora pública, as equipes se depararam com 103 homens internados, sendo um deles adolescente de 17 anos. Dentre o cenário estavam pacientes automutilados, dopados sem conseguir pronunciar o próprio nome, feridos com cortes e um idoso quase cego.
“Havia um outro senhor bem idoso que precisava ser submetido a um tratamento oftalmológico que ele estava perdendo a visão. Ele estava lá havia 3 meses e nunca tinha tido nenhum tipo de atendimento médico”, conta ao Jornal Midiamax.
Dois pacientes estavam com ferimentos graves e em “profundo sofrimento mental”, conforme o relato.
“Um paciente, quando ele está com um transtorno e em sofrimento, ele provoca automutilação. Então, dois pacientes estavam provocando autolesões exatamente como uma forma de demonstrar, de pedir socorro, de demonstrar o sofrimento e a tortura pelos quais eles estavam passando”, relata a defensora.
“Havia ainda um paciente ferido que tinha sido dopado e caiu, ele não conseguia andar, ele caiu e cortou a testa. Havia um senhor de idade já com uma bolsa de colostomia que precisava de atendimento médico”, continua citando à reportagem.
Outro idoso estava em uma cadeira de rodas, que não falava e nem conseguia se movimentar. O corpo e principalmente as pernas estavam muito inchadas, indicando urgentemente atendimento médico para identificar uma possível doença, já que o paciente não conseguia falar.
“Outros pacientes com as pernas machucadas até em relação a doenças que foram produzidas ali dentro”, afirma ao Jornal Midiamax.
Caso de polícia
A partir de então, a fiscalização rotineira no estabelecimento no bairro Chácara dos Poderes virou caso de polícia.
“Nós entendemos que era necessário que nós acionássemos os órgãos necessários para fazer frente às violações que estavam acontecendo ali. Então, encontramos muitas pessoas idosas, que não tinham histórico de dependência química, mas pessoas que tinham transtorno mental, que estavam ali sem juízo crítico, sem autonomia”, conta a defensora.
Além da Polícia Civil, a situação foi acompanhada pelo Ministério Público Federal, Conselhos Regionais de Psicologia e Farmácia (CRP e CRF, respectivamente), além de órgãos da assistência social da Prefeitura de Campo Grande.
Cárcere privado
Mas por que diante de tanta insalubridade e violência, os pacientes continuavam ali? Segundo Eni, para retirá-los do local, a família precisava arcar com uma multa que beirava os R$ 2 mil e muitos não tinham este recurso.
“Isso também caracteriza cárcere privado. Você impedir uma pessoa de sair, por considerar que ela tem uma dívida ou por imposição de multa. Essas imposições de multa também são ilegais”, ressalta. A Defensoria Pública está atendendo algumas famílias e pacientes da clínica. Outras vítimas podem procurar a DPGE-MS, que acolhe e orienta no processo.
A disciplina era mantida a base de surra e de medicamento”
Os pacientes ainda relatam às equipes que se tentassem fugir, eram recapturados e apanhavam. “A disciplina era mantida a base de surra e de medicamento. Esses relatos todos foram feitos por uma grande maioria das pessoas que estavam ali”, conta ao Jornal Midiamax.
Por outro lado, os familiares também relataram que não tinham acesso aos pacientes, ou seja, eram proibidos de ter contato familiar. Nas ocasiões que acontecia, era extremamente vigiado. “Todas essas questões são ilegais, você não pode colocar uma pessoa num ambiente e privá-la do contato familiar”, explica Eni.