Aristóteles na obra “Política” diz que: "… a lei é a razão não afetada pelo desejo (…) [onde] os homens procuram por um termo médio… [e] a lei é o justo meio". No Estado Democrático de Direito o Estado detém o poder de julgar porque sobre ele reside a fé social da imparcialidade, que é a coluna que sustenta o sistema de justiça. Nesse aspecto se espera que autoridade policial investigue a notícia crime sem nenhuma espécie de presunção, pois, no inquérito, devem ser colhidos todos os elementos de prova que demonstrem a materialidade e a autoria delitiva, isto é, se o crime existiu e quem é o autor do crime, bem como as circunstâncias em que o crime ocorreu.
O inquérito ainda é submetido ao Ministério Público, a quem cabe observar se a lei foi cumprida. Mas não é só, a ação penal somente poderá ser proposta mediante o cumprimento dos requisitos (possibilidade jurídica do pedido, interesse de agir, legitimidade de partes e justa causa). E mesmo que o Ministério Público proponha a ação, o Juiz também é um filtro, a ação penal somente será aceita mediante o cumprimento dos requisitos legais. Veja que da notícia crime até o recebimento da ação penal o sistema colocou três filtros legais. Tudo isso pra impedir que pessoas sejam levadas a julgamento sem justa causa.
Entende-se então que, diante desse sistema, com os três filtros (autoridade policial, promotor, e juiz), é impossível que uma pessoa seja processada com base exclusivamente nas declarações da vítima, isto é, com base no registro da ocorrência. Bem, isso é o que deveria ser, mas, infelizmente, os filtros não funcionam, e a lei não é observada, fazendo com que o cidadão seja vítima da interpretação pessoal (desejo) que a autoridade faz da norma.
Milhares de processos criminais estão fundamentados exclusivamente nas declarações da vítima, há ainda aqueles em que a autoridade acrescenta depoimentos de policiais que repetem o que a vítima lhes disse, o chamado “depoimento de ouvir dizer”, que os americanos chamam de “hearsay”.
É por isso que nós criminalistas dizemos que o Estado é uma máquina de moer gente, e essa gente moída, em sua maioria, são pobres e negros. Mas não podemos nos submeter a ser plateia dessa usina de pena, que chamamos de Justiça Criminal.
Gustavo Badaró é cirúrgico ao dizer que “... é inegável o caráter apenador do simples “estar sendo processado”. Essa realidade degradante que representa o status de réu num processo penal faz com que não seja admitido que alguém seja processado criminalmente, sendo-lhe imputada a prática de um delito, sem que haja uma mínima base probatória quanto à existência do crime e sua autoria. É uma intolerável agressão à dignidade do cidadão, um processo sem que haja o mínimo de elementos de informação, normalmente colhidos no inquérito policial, a indica que a ação penal não é concretamente viável”.
O processo penal se torna um instrumento devastador na vida das pessoas, causa anseios, medos, restrições e exposição social. Muitas vezes o espetáculo que a justiça criminal proporciona causa a morte daqueles que se sentem injustiçado, como é o caso do reitor da UFSC. E também o caso ocorrido em Coxim/MS, em junho desse ano.
Podemos lembrar da figura de Gregor Samsa, personagem no livro Metamorfose de Kafka. O réu em processo penal passa a ser, muitas vezes, visto como um problema pela própria família, é abandonado e se vê definhar e despersonalizar longe do afeto familiar e fraternal. Retoma sua posição após uma absolvição, mas consegue ainda observar a trilha de destruição que o processo deixou.